PL com linguagem desatualizada revela falta de escuta e risco de capacitismo
O texto utiliza classificações diagnósticas ultrapassadas e termos já superados pela ciência e pela legislação brasileira

Criar e aprovar leis que validem os direitos das pessoas autistas é fundamental para a construção de uma sociedade mais justa e acessível. No entanto, é igualmente importante que essas legislações estejam alinhadas com as evidências científicas mais recentes, com os marcos legais em vigor e com a linguagem respeitosa e atualizada. Quando isso não acontece, a intenção pode ser boa, mas o resultado acaba revelando uma comunicação distante entre o legislador e o público que ele pretende beneficiar.
Foi o que se observou em um projeto de lei que propõe garantir meia-entrada para pessoas com Transtorno do Espectro do Autismo (TEA) e seus acompanhantes em eventos culturais no estado. A proposta parte de um mérito inegável: ampliar o acesso ao lazer e à cultura, reconhecendo a necessidade de inclusão. No entanto, a forma como o texto foi redigido apresenta termos diagnósticos ultrapassados e classificações já superadas pela ciência e pela legislação brasileira.Entre os equívocos está o uso de expressões como “Autismo Infantil”, “Síndrome de Asperger”, “Transtorno Desintegrativo da Infância” e “Transtornos Globais do Desenvolvimento” — categorias que foram oficialmente descontinuadas com a publicação do DSM-5, em 2013. Desde então, todas essas condições foram agrupadas sob o diagnóstico de Transtorno do Espectro Autista (TEA), com diferentes níveis de suporte (1, 2 ou 3) e perfis variados.
Apesar dessa atualização já consolidada no campo da saúde mental, o CID-10 ainda mantém essas nomenclaturas desatualizadas, o que, em parte, explica a permanência de tais termos em documentos oficiais. No entanto, esses rótulos já caíram em desuso entre profissionais da área e tendem a ser definitivamente abandonados com a chegada do CID-12, que deverá incorporar os avanços mais recentes da neurociência e da prática clínica.
Outro termo problemático no texto do projeto é “Transtorno com Hipercinesia associada a Retardo Mental”, que carrega duplo descompasso: o termo “retardo mental” é reconhecidamente capacitista e inadequado, além de refletir uma classificação antiga do CID-10, já substituída pelo CID-11 no Brasil desde 2022.
Embora a proposta tenha como mérito garantir um direito pouco regulamentado nos estados, sua redação revela um distanciamento das evidências científicas mais recentes e dos marcos legais vigentes.
Os erros conceituais indicam que, na elaboração do texto, possivelmente não foram ouvidos especialistas da área ou pessoas da comunidade atípica — o que compromete a efetividade e a sensibilidade da medida.
Mais do que aprovar leis, é preciso escutar quem vive o autismo na pele.
Projeto de Lei nº 432, de 2024 / Assembleia Legislativa de Rondônia.
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